"São quase cinco horas da madrugada. E a luz da aurora em desmaio, frio aço azulado e com travo e cica do dia nascente das trevas. E que emerge à tona do tempo, lívida eu também, eu nascendo das escuridões, impessoal, eu que sou it.
Vou te dizer uma coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um "isto". E escrevo com "isto" - é tudo o que posso. Inquieta. Os litros de sangue que circulam nas veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em plenilúnio. Parambólica - o que quer que queira dizer essa palavra. Parambólica que sou. Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maças. Eu sou uma cadeira e duas maças. E não me somo.
O que te direi? te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? ai de mim que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas. À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.
Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê? sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas, e eu que mal e mal comecei a minha jornada, começo-a com um senso de tragédia, adivinhando para que oceano perdido vão os meus passos de vida. E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar.
Fragmentos de Água Viva - Clarice Lispector
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